Lá nos idos 1900, a hoje temida heroína, droga de abuso que alimenta cartéis, máfias e perseguições cinematográficas, podia ser comprada em qualquer farmácia, por um valor módico. Não era necessário nem apresentar prescrição médica, era como ir até a esquina comprar uma Aspirina para dor de cabeça. E chamava Heroína mesmo (com H maiúsculo), sem nenhum disfarce. Seus avós e bisavós não tinham ainda nenhuma pista de que um dia a substância heroína (com h minúsculo) seria proibida e caçada. Para eles, era apenas um xarope para tosse extremamente eficiente. Um xarope que, inclusive, aparecia em propagandas nas revistas direcionadas para as donas de casa, com intuito de estimular essas mulheres a oferecerem o tal xarope para os seus filhos, quando esses estivessem gripados ou com crises de asma.
Afinal, o que poderia dar errado?
Nem um século depois, e nos deparamos com Cristiane F., a artista que ficou famosa por publicar uma biografia em que relata uma adolescência marcada pela dependência química da heroína e pela consequente prostituição, como forma de conseguir acesso à substância. O problema do vício em heroína foi retratado diversas vezes no cinema, como na comédia de humor sombrio Trainspontting, com seu lendário personagem Mark Renton, que fazia uso abusivo de heroína, tentava largar sem sucesso e não conseguia fixar-se em nenhum emprego. Para a geração X, Cristiane F. e sua história dramática, assim como Mark Renton e suas incursões escatológicas, se tornaram a imagem do que o uso da heroína poderia causar. Esse cenário de tragédia anunciada que habita a nossa percepção sobre a heroína foi construído ao longo do século XX.
Após o lançamento da Heroína como remédio, não foram necessários muitos anos para que ficasse evidente que as pessoas usavam heroína não só como xarope para tosse. Relatos de consumo em quantidades cada vez maiores e de mortes por overdose se tornaram frequentes e assustaram a classe médica. Em duas décadas, a heroína deixou de ser um medicamento inocente para se transformar num inimigo público número um, pelo menos em algumas partes do mundo.
A Heroína havia sido lançada no mercado pela gigante farmacêutica Bayer antes de que alguém soubesse o que ela era. Um químico bem-sucedido, chamado Felix Hoffmann, trabalhava para a Bayer e sintetizava novas substâncias adicionando penduricalhos a substâncias naturais, como muitos faziam na época. O que havia de diferente entre Hoffmann e seus outros colegas é que ele era mais eficiente em encontrar métodos de produção em larga escala para as suas criações.
Hoffmann não foi o primeiro a sintetizar heroína, mas foi o primeiro a descobrir uma forma eficiente de produção. Ele modificou a morfina, o opioide natural proveniente das papoulas (extrato vegetal de Papaver somniferum), e produziu um novo opioide. Ele nem sabia qual era a estrutura química do que ele havia produzido. Mas isso não o deteve. Mesmo sem saber com o que estava lidando, ele conseguiu perceber que o novo opioide que ele produziu era muito mais potente do que a própria morfina, e a indústria passou a disponibilizar sua produção para o consumo.
Na mesma época, Hoffmann produziu outra substância de grande interesse terapêutico e comercial. Ele sintetizou a Aspirina (aquela da dor de cabeça), a partir da acetilação do ácido salicílico natural. Mais uma vez ele não foi pioneiro na síntese, mas foi eficiente no método de produção. A Bayer então contava com dois remédios que viriam a ter uma explosão de consumo: a Heroína e a Aspirina. Heroína, inclusive, era o nome comercial, o que chamamos hoje de marca, por isso o H maiúsculo. O sucesso foi tanto que a Heroína virou heroína, nome genérico para a substância sintetizada por Hoffmann (e alguns outros antes dele que foram menos hábeis em fazer História). Inicialmente, a Heroína e a Aspirina foram sucesso não só de público como também crítica. A Aspirina é um sucesso até hoje. A Heroína só durou duas décadas, como marca, antes de passar a habitar o mercado negro.
A heroína, no entanto, não era o único derivado de ópio vendido nas farmácias, ela era, apenas, o mais potente. Desde o século XIX, a morfina e outros dos seus derivados (opioides), como a codeína, foram, sem dúvida, os principais instrumentos no nosso arsenal terapêutico para o tratamento da dor. Mesmo quando menos potentes do que a heroína, os opioides ainda são extremamente potentes na redução da dor e, até hoje, têm poucos concorrentes à altura do seu poder de analgesia. Mas tanto poder não vem de graça. Além de muito potentes, os opioides são também muito eficientes em induzir o uso abusivo e em provocar overdoses potencialmente letais.
A partir de 1920, graças ao risco de adição, derivados da morfina perderam espaço para analgésicos menos potentes, como a dipirona e o próprio ácido acetilsalicílico (substância da Aspirina). Além disso, a relação entre a morfina e seus derivados e casos graves de dependência e overdose marcou a comunidade médica e sociedade no geral, gerando uma resistência entre os próprios médicos quanto à prescrição dessas substâncias além da criação de leis que visavam controlar e coibir o seu consumo. Os opioides ficaram restritos ao uso em pessoas com doenças fatais (que não teriam tempo de desenvolver dependência ou para quem a dependência seria o menor dos problemas) e para dores muito intensas, mas de curta duração (como no período pós-operatório). Diferente dos outros derivados, a heroína, pela sua alta potência, não sobreviveu nem como remédio de exceção. E ela foi relegada a condição subalterna de droga ilegal.
Renunciar ao uso de ferramentas tão potentes como os opioides, no entanto, não foi só flores. Se usar derivados de morfina para tratar crianças gripadas parece absurdo, se recusar a usar morfina para o alívio de dores crônicas e incapacitantes parece maldade. Será que não estaríamos exagerando em não prescrever morfina e derivados? Será que não estaríamos deixando de aliviar o sofrimento daqueles que precisam? Foi com esses questionamentos que, na década de 1980, a roda da fortuna da morfina começou a girar. Alguns estudos descrevendo o uso de derivados da morfina em portadores de dor crônica foram publicados e sugeriam que o uso controlado de opioides não necessariamente resultava em abuso e dependência[1]. As resistências para a prescrição de morfina e derivados começaram a rachar a comunidade médica, que passou a vislumbrar a possibilidade de reabilitar a famigerada morfina.
O golpe final na resistência aos opioides ocorreu em 1990, pelas mãos de um psicólogo canadense especializado em dor, chamado Ronald Melzack. Melzack publicou um artigo na Scientific american, uma revista de divulgação científica para o público geral, com o título nada discreto de “A tragédia da dor desnecessária” (em tradução livre do original “The Tragedy of Needless Pain”). O argumento de Melzack é que pessoas com dores crônicas estavam sofrendo desnecessariamente simplesmente porque os médicos que as atendiam se recusavam a prescrever morfina ou derivados. Segundo ele, a morfina poderia causar dependência em algumas pessoas, mas não era por isso que deveria ter seu uso impedido em todos os casos. Muitos poderiam se beneficiar do alívio produzida pela morfina sem nunca se tornarem dependentes.
No seu artigo, Melzack fala especificamente de morfina. Um remédio antigo, que podia ser produzido por qualquer indústria farmacêutica pois já não havia controle de patente. Ele falava do lugar de alguém compadecido com as dores das pessoas para quem eram negados todos os recursos conhecidos. Melzack não pretendia, até onde é possível apreender, estimular a indústria farmacêutica a usar seus argumentos em favor da prescrição de opioides para obter lucros estratosféricos. Ele definitivamente não tinha a intenção de incentivar o consumo de opioides para toda e qualquer dor, muito menos de enriquecer a família Sackler, dona da Purdue Pharma e principal beneficiária do uso indiscriminado de um opioide sintético chamado oxicodona, três vezes mais potente do que a própria morfina.
Até onde Melzack sabia, a morfina era velha demais para ser de grande interesse econômico. Mas um executivo de marketing da Purdue Pharma, chamado Michael Friedman, calculou que um opioide sintético, num modelo patenteado recentemente, poderia sim gerar lucros expressivos. Para o nosso azar e sorte de Friedman, ele tinha a substância ideal em mãos para executar seus objetivos: a oxicodona. A oxicodona não tinha absolutamente nada de novo. Ela era um derivado da morfina com efeitos conhecidamente euforizantes e aditivos que havia dominado o mercado no início do século XX até cair em desgraça juntamente com alguns dos demais opioides. Mas a Purdue Pharma havia ressuscitado a oxicodona mudando o seu mecanismo de liberação. Eles agora tinham a oxicodona de liberação lenta[2], chamado OxyContin. E essa sim era uma droga recentemente patenteada.
O estudo inicial feito pela Purdue com o OxyContin tinha sido um desastre. Metade dos pacientes incluídos no estudo não aguentaram chegar até o final por conta dos efeitos colaterais da medicação. Infelizmente, isso não deteve o otimismo de Friedman. Ele calculou, acertadamente, que o número de pacientes com dores crônicas causadas por doenças não letais era tamanho, que investir nesse mercado teria o potencial de gerar dezenas a centenas de milhões de prescrições por ano só nos Estados Unidos. Uma oportunidade imperdível. Frente ao desastre do primeiro ensaio clínico, mas tendo a perspectiva de um grande mercado consumidor, ele tomou a decisão que lhe pareceu mais sensata: investir agressivamente na oxicodona recauchutada.
Richard Sackler, herdeiro e presidente da Purdue Pharma, entrou na onda e ficou empolgado com as perspectivas de explorar o uso do OxyContin. Alguns especialistas levantaram ressalvas e propuseram reduzir o rol de indicações para o uso do OxyContin excluindo, por exemplo, dor lombar crônica, que pode estar associada a características que aumentam a predisposição à dependência. Os mesmos especialistas também propuseram deixar um aviso chamativo na bula sobre o risco de dependência. O que significa que Sackler e Friedman não desconheciam os temores relacionados a oxicodona, eles só optaram por ignorá-los e seguir adiante com seu plano de usar médicos como ponte para alcançar os pacientes com queixas crônicas de dor. Esses pacientes afinal eram tantos que não podiam ser ignorados… E se esses mesmos pacientes ficassem dependentes? Para Sackler e Friedman tanto melhor, pois isso significava criar um mercado consumidor fiel.
__
Do mesmo modo que a heroína nem sempre foi proibida, comodidades como canais de streaming não estiveram sempre disponíveis. Houve um momento da história recente no qual alugávamos filmes nas videolocadoras e aguardávamos uma semana para assistir ao próximo episódio da nossa série favorita. Nessa época, estamos falando do período entre 1980 e 2010, algumas poucas séries ocupavam os nossos corações. Existiam legiões de apaixonados por thrillers de ficção científica como a série Arquivo X ou novelas para adolescentes como Barrados no Baile, ou ainda, o meu favorito desses tempos, a série para adolescentes engajados Anos Incríveis.
No entanto, todas essas referências parecem anãs frente a sitcom que marcou a cultura pop ocidental, a série Friends. Nela, seis personagens com idades próximas, na faixa dos vinte e poucos anos, se divertiam com trapalhadas profissionais e amorosas e encantavam a audiência. Não parecia haver nada de extraordinário sobre o enredo, mas talvez exatamente por isso, ele tenha sido tão bem-sucedido.
O sucesso da série transformou a vida dos atores que encenavam os seis personagens de Friends. De atores obscuros, praticamente desconhecidos, eles saltaram, em alguns meses, para a posição de rostos conhecidos por qualquer um que não vivesse em um outro planeta. Durante dez temporadas, a vida desses atores esteve entrelaçada à vida dos personagens que representavam na tela.
Todo esse saudosismo típico da geração X (da qual faço parte) cheio de referências da cultura de massa, foi só para falar do drama do ator Mathew Perry que representava o personagem Chandler na sitcom. E não é para fazer fofoca, o próprio Perry abriu sua história pessoal para todos que tivessem interesse em algumas reportagens biográficas.
Mathew Perry sofreu com o uso abusivo de opioide sintéticos e álcool no auge do seu sucesso. Quando tudo parecia a Disneylândia, com dinheiro, fama e reconhecimento, Perry se afundou na alienação produzida pelas drogas de modo a não se lembrar de um período de três anos da sua própria vida, correspondente a três das dez temporadas de Friends. Podemos não ter percebido, mas Chandler estava intoxicado uma boa parte do tempo.
___
A história do OxyContin e seus detalhes sórdidos vieram a púbico por conta dos processos movidos contra a Purdue Pharma e a família Sackler pelo departamento de justiça dos Estados Unidos, pelos próprios usuários e por alguns estados estadunidenses severamente afetados pela dependência de opioides. Nesses processos, a indústria e seus diretores são parcialmente responsabilizados pela epidemia de dependência de opioides que hoje assusta os estadunidenses. Depois de anos brigando com o tráfico de drogas ilegais, os Estados Unidos se deram conta que seu maior problema não são as drogas que vem de outras partes do mundo, mas sim aquelas que eles vendem legalmente nas farmácias. A responsabilidade atribuída aos executivos da indústria foi a de incentivar o uso da oxicodona por meio de propaganda e não difundir a informação sobre o seu potencial risco de dependência.
Para apimentar mais a situação, a família Sackler está classificada entre as famílias mais ricas dos Estados Unidos e está envolvida em intensas atividades filantrópicas, fornecendo apoio financeiro para museus e universidades. Nessa história, a vida real parece ficção. Richard Sackler e Michael Friedman parecem vilões de quadrinhos – gananciosos, inescrupulosos e insensíveis, disfarçados de benfeitores na superfície. Questionar o envolvimento da família Sackler e de Michael Friedman na epidemia de dependência de opioides não é uma teoria da conspiração. É uma conspiração de fato. Porém, condenar os envolvidos a pagar multas milionárias ou mesmo impedi-los de comercializar o OxyContin, embora seja devido, não garante por si só um final feliz. Inclusive porque a maior parte dos usuários que hoje são dependentes de opioides não usam mais o OxyContin. A acusação era de que esse havia servido mais como uma droga de entrada para os demais opioides.
Sackler e Friedman podem até ter se aproveitado do sofrimento alheio, mas não foram eles que inventaram as condições que tornaram quem sofria vulnerável à dependência química. Por um lado, é perfeitamente legítimo questionar a posição da indústria farmacêutica frente ao risco de dependência ou efeitos adversos dos seus produtos. Por outro, é exagero acreditar que a indústria é um conjunto de malvados que controla a dor e o sofrimento das pessoas assim como todas as suas decisões. Eu concordo que, no caso da família Sackler, classificá-los como malvados é apropriado, mas a Purdue Pharma está dentro de um contexto social e cultural mais amplo, e o verdadeiro problema é que, no nosso contexto, recorrer a remédios potentes para o controle da dor é muito tentador.
A dor é um fenômeno que depende da nossa percepção. E a nossa percepção é diretamente afetada por questões sociais, culturais e emocionais. Quem nos conta isso é, inclusive, o próprio Ronald Melzack, mencionado anteriormente pela sua defesa do uso da morfina para dores crônicas e incapacitantes. Sendo assim, fatores como o nosso modo de vida, a forma como a nossa cultura julga as manifestações de dor, a segurança que atribuímos às nossas relações pessoais, a nossa condição social e econômica, a nossa bagagem de conhecimento, o nosso acesso a procedimentos médicos e terapêuticos etc., afetam a nossa relação com a dor e os seus potenciais tratamentos. O acesso facilitado à morfina é só um elemento nesse conjunto. O que significa que a condenação da Purdue e de Sackler não vai modificar consideravelmente o cenário onde se estabelece a dependência de opioides.
Mesmo que a indústria tenha seu quinhão de responsabilidade, existem outros personagens dessa história que precisamos considerar. O marketing do Oxycontyn foi direcionado aos médicos que o prescreveram para os seus pacientes que, por sua vez, o consumiram. Para entender epidemia de opioides, precisamos nos perguntar por que os médicos os prescreveram e por que os pacientes os tomaram. Numa teoria da conspiração clássica, todos os médicos teriam sido comprados. Mas, mesmo que alguns tenham sido corrompidos, é altamente improvável que uma classe inteira de profissionais tenha sido paga para prescrever opioides. O mais provável é que os médicos tenham concordado com os argumentos de Melzack e tenham realmente tentado reduzir o sofrimento e a dor dos seus pacientes. Afinal, também tinham sido os médicos que aboliram o uso indiscriminado de opioides para começar.
Ao controlar a prescrição de opioides e ao restringir o seu uso aos casos extremos, os médicos viraram vilões para aqueles que podiam se beneficiar dos remédios que lhes eram negados. Tentando fugir da acusação de responsáveis por incentivar o uso de drogas de abuso, a comunidade médica saiu em disparada para o cenário oposto – ao invés de incentivadores irresponsáveis os médicos passaram a ser os proibidores cruéis. Na próxima reviravolta, ao se dar conta que o remédio podia ser mais amargo do que a doença, que a proibição podia ser pior do que prescrição, os médicos, motivados pelo marketing positivo do OxyContin, perderam a mão.
Os pesquisadores que apoiaram maior liberdade na prescrição de opioides e incentivaram o seu uso para dores crônicas, entre eles Ronald Melzack, continuam negando o efeito nocivo do uso excessivo de opioides[3]. Essa é uma posição difícil de defender dado o aumento em 4 vezes na prescrição de opioides entre 1990 e 2016 e o aumento proporcional em mortes relacionadas a opioides no mesmo período. Nos Estados Unidos, em 2016, 20mil pessoas morreram de overdose relacionada a fentanil[4], 15mil morreram por overdose de heroína e 14mil morreram por overdose de opioides sintéticos vendidos nas farmácias, como o OxyContin.
Quanto aos motivos que levam os pacientes ao consumo abusivo de substâncias, precisamos de uma análise mais profunda. Nós todos temos nossas peculiaridades e estamos sujeitos a heranças e pressões controláveis e incontroláveis. Carregamos, por exemplo, uma herança genética que influencia algumas das nossas predisposições. Apesar dessas influências serem discretas quando consideradas isoladamente, no quadro geral, elas pesam na balança a favor ou não do uso abusivo de substâncias. O nosso conhecimento sobre os efeitos de genes específicos e os comportamentos abusivos sugere que não há uma associação simples entre um gene e o comportamento como em doenças eminentemente genéticas. A genética do comportamento envolve múltiplos genes de pequeno efeito e é modulada tanto pela interação desses genes com o ambiente quanto pela interação entre os próprios genes. O que resulta em modelos complexos que atualmente ainda estão além da nossa capacidade de compreensão.
É um fato que a nossa constituição genética é um ponto de partida altamente sensível ao ambiente ao qual estamos submetidos. E o que definimos como ambiente é mais amplo do que pode parecer num primeiro momento. Por ambiente estamos falando de tudo que acontece ao longo do desenvolvimento embrionário, gestação, nascimento e desenvolvimento. Estamos falando de fatores como a época do ano na qual fomos concebidos, a dieta à qual nossas mães tinham acesso, o quanto elas se estressaram durante o processo, o consumo de álcool, tabaco e remédios, o tipo de parto, as doenças virais e bacterianas, os traumas físicos e emocionais, o quanto os genitores foram presentes, a nossa origem cultural, fenômenos de migração e aculturação, estabilidade social e econômica, acesso à educação e serviços de saúde, oportunidades de inserção cultural, guerras e conflitos, religião, integração social e centenas de outros fatores que precisariam de um livro inteiro para serem descritos. Dentro dos nossos contextos peculiares, temos ainda que contar com os efeitos das nossas decisões e do peso do acaso.
Escutando as histórias de pessoas que sofreram grandes prejuízos decorrentes do uso abusivo de drogas alienantes nos damos conta, mais uma vez, de que nenhuma história é igual a outra. Os exemplos que eu tenho são com muito pouca frequência de dependência de opioides, pois esse é um tipo de dependência tão comum por aqui, quando comparado aos Estados Unidos. Mas mesmo sendo drogas diferentes, alguns aspectos do uso abusivo e prejudicial se repetem, mas em formatos diferentes.
Às vezes, os sinais de que algo vai mal existiram desde sempre, como quando nos deparamos com pessoas que nasceram em ambientes de muita violência e exclusão. Eu me lembro de uma paciente que contava que as suas memórias de infância envolviam um pai que consumia álcool em quantidades tão elevadas que ela não se lembra do pai sem os estigmas físicos da cirrose hepática e demência alcoólica avançadas. Esse mesmo pai não conseguiu manter o emprego e o sustento era provido por uma tia que nunca havia estudado e realizava atividades mal remuneradas de limpeza. A tia que aparecia nas memórias da filha como alguém fisicamente violenta, mas que ao mesmo tempo se desdobrava em mil para garantir a comida na mesa e o teto sobre as suas cabeças. Apesar de toda a adversidade, essa paciente conseguiu o que parecia impossível e se formou no nível superior, saindo da situação de extrema pobreza. Por um lado, as lembranças ruins relacionadas ao alcoolismo do pai a incentivaram a manter a abstinência total do álcool. No entanto, ao se deparar com outras drogas, ela acabou se afundando no consumo prejudicial de cocaína de modo a colocar a própria vida em risco em diversas ocasiões. Eu a conheci no pior momento, em que o consumo de cocaína a havia empurrado para a situação de desconexão total com a realidade na forma da paranoia. Com o tratamento psicológico, farmacológico e suporte familiar, ela conseguiu se recuperar e reassumir a própria vida. O peso do trauma passado, porém, retorna regularmente requerendo atenção e cuidado constantes. Para essa paciente a religião xamânica foi especialmente importante pois os rituais que envolviam longas repetições de movimentos ritmados conseguiam produzir momentos de alteração de consciência que a ajudavam a lidar com o sofrimento sem a empurrar para a espiral de prejuízo e paranoia relacionada a cocaína. Uma saída singular que não teria como ser prescrita por psiquiatras, mas que juntamente com o tratamento psiquiátrico lhe permitiu uma existência que para ela tinha sentido.
Em outra ocasião, acompanhei um paciente que vinha de um contexto marcadamente privilegiado do ponto de vista econômico. Além disso, ele era hábil socialmente, com uma aparência física que chamava muita atenção, e mantinha bom desempenho acadêmico. Seguiu uma careira artística que parecia muito promissora, com uma ascensão inicial marcante. Num primeiro momento, parecia que o sucesso estaria garantido. No entanto, o privilégio econômico, a boa aparência e o talento artístico não vieram acompanhados de estabilidade emocional. Esse paciente não tolerava frustração em nenhum formato e o seu sofrimento frente a qualquer mínimo sinal de rejeição só era aliviado com o consumo de quantidades impressionantes de craque. O craque é uma droga altamente volátil, cujo efeito é intenso e de duração extremamente curta. Por essa característica, o consumo de craque pode ser feito de forma compulsiva com o uso de uma pedra atrás da outra por horas seguidas, ou até dias seguidos, sem interrupção. O que contribui para a má reputação dessa droga. Esse paciente falava pouco da infância, parecia não haver pessoas que haviam sido responsáveis pelo seu cuidado povoando a sua memória. Ou pelo menos a memória à qual eu tinha acesso. Talvez, quando eu o conheci, os efeitos do consumo prolongado de grandes quantidades de drogas já tivessem deixado sua marca. Ou talvez ele tenha sido pouco conectado as histórias de sua vida desde sempre. Os familiares com os quais tive contato pareciam já ter desistido, se sentiam impotentes frente ao consumo cada vez maior da droga, e já tinham investido muito dinheiro em tentativas de recuperação que lhes pareceram inúteis. Diferente da nossa primeira história, o desfecho desse paciente foi trágico.
Ao me deparar com as histórias contadas por essas duas pessoas, eu não tinha a menor ideia de como a vida delas iria evoluir. A origem do ponto de vista de privilégios e oportunidades não sela destinos, apesar de ser muito relevante para o quanto as pessoas sofrem e para os tipos de tratamentos aos quais elas podem ter acesso. Cabe notar que mesmo na primeira situação de origem na privação, havia recursos financeiros, educacionais e familiares que foram construídos ao longo da vida antes da entrada na ladeira abaixo do uso abusivo de substâncias. E o acesso a recursos é certamente relevante para a nossa capacidade de renunciar ao uso abusivo de substâncias alienantes, apesar de não ser suficiente para garantir uma saída sustentável. A escassez total de recursos, por sua vez, é profundamente desamparadora. Acompanhando pessoas que não tinham mais quaisquer laços familiares, comunitários e recursos financeiros de qualquer ordem, aprendi que o nosso trabalho de psiquiatra é muito menos relevante do que gostaríamos. Nos sentimos enxugando gelo a maior parte do tempo. Eventualmente encontramos algum sinal de recurso emocional, familiar ou social e a partir daí presenciamos uma reconstrução emocionante. Mas as histórias de superação são muito mais a exceção do que a regra. Se engana quem acredita que basta uma decisão individual. A decisão individual de renunciar a um tipo prejudicial de alienação é essencial, mas não é suficiente. Assim como o acesso a recursos ajuda, mas não garante uma vida razoável.
Os seres humanos eventualmente abusam de substâncias de formas extremamente nocivas para si e para quem estiver próximo. Muitos fatores alteram a probabilidade de isso ocorrer. No entanto, nenhum fator isolado é determinante. Ou seja, não há nenhum fator que, se presente, garante que ocorrerá ou não alguma forma de uso abusivo e prejudicial. A dependência de derivados da morfina foi facilitada pelo uso indiscriminado de OxyContin, mas só isso não explicado o resultado. Entender por que nós nos tornamos tão susceptíveis à dependência vai muito além do que pode prever a nossa vã biologia.
O que a história dos opioides ilustra é que, por um lado, as teorias da conspiração que colocam um punhado de malvados como gênios do crime que controlam todo o processo que subjaz à nossa forma de civilização podem até ter alguma base na realidade, mas, por outro lado, essas mesmas teorias extrapolam e simplificam a realidade de modo obtuso e ilusório. É consolador reduzir o mundo a vilões e mocinhos facilmente identificáveis e acreditar que sempre se está do lado certo – o único lado certo! No entanto, na realidade nos deparamos muitas vezes com situações em que não há uma distinção clara entre certo e errado, só um monte de soluções insatisfatórias que trazem consigo outros problemas, como o uso de opioides para o tratamento da dor. A Purdue não estava certa em explorar a fraqueza dos pacientes. E o órgão regulador também falhou ao ignorar os efeitos da propaganda que subestimava os riscos associados ao uso de OxyContin. No entanto, como nos foi alertado por Melzack, restrições proibicionistas do passado também haviam sido cruéis para aqueles que efetivamente poderiam se beneficiar dessas substâncias. A saída insatisfatória possível para o momento é regulamentar o lançamento de novas drogas e monitorar tanto a propaganda promovida pela indústria farmacêutica quanto a atividade médica de prescrição de substâncias associadas a uso abusivo. Isso não elimina o risco de um novo escândalo dos opioides, mas é o que dá para fazer prejudicando o menor número de vidas possível. Ou seja, facilitando o acesso para aqueles que precisam dele e restringindo para aqueles que podem ser prejudicados, sem nenhuma garantia de que exceções problemáticas deixem de ocorrer.
No caso da epidemia de dependência de opioides, a atuação da Purdue Pharma é o sintoma, mas não a causa da doença. Um sintoma que sinaliza o quanto somos vulneráveis a alternativas que produzem alívio imediato. Para fazer melhor do que isso e aumentar o conforto dos pacientes com dor crônica sem estimular o uso abusivo de narcóticos, as potenciais soluções são muito mais complexas do que condenar alguns bandidos. Envolvem não só facilitar o acesso às alternativas não farmacológicas de tratamento, mas também investir em melhorar as condições de vida e as redes de suporte social e emocional. Nada que possa ser resolvido com uma simples canetada ou com o cancelamento de um punhado de gênios do mal. Nem com uma pílula. Não existe poção mágica nem revolução fácil, temos ainda muito trabalho pela frente se quisermos reduzir nossa vulnerabilidade à dependência química e modificar a nossa relação com os remédios e com quem os produz e prescreve.
——–
[1] São estudos de baixa qualidade que, apesar de todos os seus problemas metodológicos, foram mencionados diversas vezes depois da sua publicação.
[2] Mecanismos de liberação lenta tendem a amenizar potenciais efeitos colaterais e reduzir o risco de uso abusivo, porém, no caso do OxyContin, esses mecanismos não foram suficientes para impedir o abuso, além de terem sido facilmente burlados com a quebra do comprimido antes da ingestão.
[3]Jones, M. R., Viswanath, O., Peck, J., Kaye, A. D., Gill, J. S., & Simopoulos, T. T. (2018). A Brief History of the Opioid Epidemic and Strategies for Pain Medicine. Pain and therapy, 7(1), 13–21. https://doi.org/10.1007/s40122-018-0097-6
[4] O fentanil é um anestésico potente cujo uso é legalizado exclusivamente em ambiente hospitalar.