E se existisse uma pílula da inteligência? Uma droga capaz de turbinar nossa memória e nossa capacidade de raciocínio, a ponto de melhorar nosso desempenho em uma prova ou teste. Quais seriam as implicações éticas de usar essa substância? Numa prova de vestibular, por exemplo, seria justo que alguns candidatos com maior poder aquisitivo tivessem acesso a essa substância, mas não os demais? Seria então legítimo que o custo dessa droga fosse coberto pelos sistemas de saúde? Ou o uso desse recurso seria considerado trapaça?
Na década de 1990, no auge da euforia com o lançamento de novos antidepressivos, que vendiam como água, o psiquiatra americano Peter Kramer cunhou o termo “Psiquiatria Cosmética” para se referir ao potencial uso de remédios psiquiátricos como um meio para nos transformar em seres humanos mais capazes, indo muito além do tratamento de doenças emocionais.
Esse termo apareceu no livro de Kramer “Ouvindo Prozac,” publicado pela primeira vez em junho de 1993. O livro em si não era sobre o uso cosmético de antidepressivos, mas apresentava essa questão, construída a partir das observações do psiquiatra. Ele percebeu que alguns pacientes não queriam interromper o uso de antidepressivos mesmo após estarem melhor da depressão, por sentirem que esses remédios os haviam transformado em pessoas mais seguras.
Hoje, está claro que os remédios que bateram recordes de vendas na década de 1990 são mais limitados do que a euforia inicial permitiu antecipar; definitivamente, não servem para serem usados no formato cosmético. Eles funcionam como antidepressivos, mas não transformam as pessoas em seres com habilidades especiais. A confusão em relação a sensação de segurança havia surgido, na verdade, de uma melhora de sintomas de ansiedade.
No entanto, o termo “Psiquiatria Cosmética”, cunhado por Kramer, talvez nunca tenha sido tão adequado como para descrever algumas tendências da Psiquiatria atual. Um uso de remédios psiquiátricos não para melhorar de sintomas emocionais, mas sim para que seja possível não se abalar com fatores como a sobrecarga de informação, a pressão social, o excesso de trabalho e as falhas da memória e de atenção.
Alguns remédios psiquiátricos são prescritos para funcionar como botões de ligar e desligar para acordar e para dormir, tornando os pacientes (precariamente) imunes às pressões da vida moderna. Mais: no imaginário popular, algumas dessas drogas psiquiátricas estão sendo descritas como sendo capazes de aperfeiçoar o desempenho cognitivo e melhorar os resultados em provas e concursos.
A fantasia de que é possível criar pílulas da inteligência não é nenhuma novidade. O que existe de novo é a participação da Psiquiatria nessa fantasia, talvez até de forma ingenuamente bem-intencionada. Afinal, como alguém pode questionar uma tentativa de atender à demanda de quem se se sente perdendo no jogo da vida? Se alguém procura um profissional médico porque tem dificuldade para ficar mais horas estudando ou tem dificuldade de recordar temas que podem cair em algum teste, por que não vamos nos prontificar a ajudar? Os psiquiatras, afinal de contas, não estão aqui exatamente para ajudar as pessoas com esse tipo de demanda?
Sem dúvida nós, psiquiatras, estamos aqui para ajudar, mas isso não quer dizer que somos capazes de superar as limitações humanas ou reverter os efeitos de um mundo hiperveloz, hiperconectado e carente de contatos físicos genuínos.
Infelizmente, a pílula da inteligência não existe.
Drogas apontadas como revolucionárias, como a modafinila e a lisdexanfetamina, por exemplo, não melhoram nossas capacidades cognitivas muito mais do que a velha e boa cafeína. E uma xícara de café não faz alguém se destacar em uma prova a ponto de ser considerada doping. O diferencial real da lisdexanfetamina frente ao café, na verdade, é provocar uma sensação de sermos muito capazes. O que, sim – em alguns momentos -, pode até ser benéfico.
Sem dúvida, há usos legítimos da lisdexanfetamina, mais conhecida pelo seu nome comercial: Venvanse. Mas esse fato não exime o questionamento sobre a prescrição de uma anfetamina poderosa em quantidades cada vez maiores.
Desde o seu lançamento, a comercialização do Venvanse bate recordes de vendas. Em 2011, foram vendidas cerca de 11 mil caixas de Venvanse; no ano seguinte, essa quantidade já pulou para 51 mil unidades – e segue aumentando desde então. Os últimos dados disponibilizados pela Anvisa mostram que, em 2021, foram comercializadas 796 mil caixas. No total, entre 2014 e 2021, o aumento de prescrições de Venvanse superou 500%. No mesmo período, concorrentes tradicionais, como Ritalina, Concerta e Ritalina LA, registraram aumento de 50%.
Talvez então seja hora de mudar nossas perguntas. Ao invés de nos questionarmos quais as implicações éticas de uma pílula da inteligência, precisamos pensar o que significa esse crescimento exponencial nas vendas de uma anfetamina potente. Um estimulante que promete – mas não entrega – mais capacidade em um mundo acelerado, que não cessa de nos trazer informações dizendo que, supostamente, a vida das outros é sempre mais divertida, produtiva e rica do que a nossa. Qual será a nossa verdadeira doença?
