Existem hormônios da felicidade?

A ideia de que existiriam hormônios, ou seja, substâncias produzidas pelo nosso próprio organismo, responsáveis por sensações de felicidade e bem-estar é uma interpretação equivocada de alguns resultados científicos.

Uma das substâncias erroneamente associada à sensação de felicidade é a dopamina. A dopamina, entre outros efeitos, atua como um neurotransmissor, ou seja, como uma molécula que participa da comunicação entre neurônios. Enquanto neurotransmissor, de acordo com resultados baseados em modelos animais, a dopamina parece sinalizar que estamos frente a algum estímulo que no passado já esteve associado à produção de uma experiência reforçadora. Essa sinalização feita pela dopamina parece ser essencial para que o animal se mobilize em direção a conseguir a recompensa. A dopamina não parece participar na produção da sensação de prazer, mas o papel da dopamina pode ser entendido como uma forma de mobilizar o animal para agir em busca de prazer. Por essa relação da dopamina com o comportamento de busca por recompensa, alguns comunicadores a incluem na lista de hormônios do prazer. Em seres humanos, no entanto, a relação da dopamina com o comportamento assume características muito mais complexas do que nos modelos animais. Sabemos que a dopamina de fato participa de alguma forma na nossa busca por reforçamento, mas também sabemos que a modulação da dopamina não é simples nem relacionada a desfechos facilmente previsíveis. Atribuir a sensação de prazer à dopamina pode dar a falsa impressão de que a dopamina é essencial ou suficiente para explicar vivências prazerosas, algo que passa longe do que sabemos hoje sobre os complexos efeitos da dopamina em seres humanos.    

Outro participante dessa lista é a serotonina. A serotonina, assim como a dopamina, tem diversas funções e para algumas dessas funções ela atua como neurotransmissor. A serotonina entrou para a lista porque diversos receptores de serotonina (moléculas da parede do neurônio na qual a serotonina se liga) são alvos de muitos remédios com efeito antidepressivo. Ainda hoje, não temos certeza de como a alteração na transmissão serotonérgica se relaciona com o efeito antidepressivo de muitos remédios. Existem diversas teorias nunca comprovadas ou que explicam apenas parte do fenômeno. O consenso atual é que o efeito antidepressivo é muito mais complexo do que uma relação simples com a disponibilidade de um neurotransmissor como a serotonina dá conta de explicar. Além disso o efeito dos antidepressivos não é produzir a sensação de felicidade. O que esses remédios podem fazer é reduzir sensações de ansiedade e angústia e melhorar a nossa disposição para nos engajarmos em alguma atividade. Se isso irá nos fazer feliz ou não, já não temos como prever. Atribuir à serotonina a sensação de felicidade, pode passar a falsa impressão de que depressão seria falta de serotonina e que o aumento da serotonina é suficiente para resolver a depressão. Nenhuma dessas relações é verdadeira, apesar de ser verdade que remédios que alteram de alguma forma a transmissão serotonérgica podem, às vezes, ter efeitos antidepressivos.         

Uma terceira substância que muitas vezes é incluída na lista de supostos hormônios da felicidade ou bem-estar é a endorfina. As endorfinas (na verdade são várias) tem esse nome pois são consideradas substâncias equivalentes, em efeito, aos derivados da morfina, substância exógena usada como analgésico. Um dos efeitos conhecidos das endorfinas é aumentar a nossa tolerância ao estresse físico. Ao realizar atividade física de moderada e alta intensidade produzimos endorfinas que se relacionam com a nossa capacidade de continuar nos exercitando à revelia do cansaço. Como muitas pessoas descrevem que se sentem melhor depois de exercícios intensos, se atribuiu às endorfinas essa sensação de bem-estar. É provável que as endorfinas tenham alguma participação no bem-estar induzido por exercícios, mas é improvável que elas sejam as únicas substâncias envolvidas nesse processo. E certamente não precisamos de teorias sobre o prazer produzido pelas endorfinas para justificar a orientação de adquirir o hábito de se exercitar.

A quarta e última substância que é frequentemente classificada como um hormônio da felicidade é a ocitocina. Os resultados de modelos animais indicam que produzimos ocitocina em situações de interação social, e com marcada intensidade na interação maternal. Além disso, a administração de ocitocina durante certas interações parece ser capaz de favorecer certos laços sociais e familiares. Já em humanos, alguns estudos apontaram também a relação entre ocitocina e a sensação de estar apaixonado. Esses achados deram a ocitocina a fama de hormônio da paixão. No entanto, a administração de ocitocina em humanos tem gerado resultados inconsistentes e hoje não é mais tão claro que ela tenha um papel central no estabelecimento de relações sociais ou amorosas na nossa espécie. Além disso, a relação entre ocitocina e a paixão tem sido contestada por novos achados científicos. Atribuir muito poder a ocitocina pode aumentar a expectativa em torno da administração de ocitocina como algo capaz de resolver problemas em estabelecer laços sociais ou até a fantasia de que seria possível induzir uma paixão por meio do uso de ocitocina exógena. No entanto, esses efeitos, quando existem, são pouco intensos e não demonstraram até hoje ter um grande impacto terapêutico.         

O risco de atribuirmos efeitos complexos como a felicidade ou a sensação de bem-estar a algumas substâncias é criar o imaginário de que, para alcançar a felicidade ou o bem-estar, basta modular algumas poucas substâncias. Ou a fantasia de que a ausência de felicidade ou bem-estar pode ser explicada pela falta de alguma substância.

Felicidade e bem-estar são sensações subjetivas de delimitação pouco clara, que não podem ser explicadas por reducionismos biológicos como o excesso ou falta de alguma substância. Tampouco, precisamos dessas simplificações para encontrar formas de nos sentirmos melhor. O que aumenta a chance de continuarmos com as mudanças de estilo de vida é a experiência de nos sentirmos mais dispostos ao assumir uma rotina de atividades físicas ou melhorar a nossa alimentação. O que faz com que procuremos por atividades sociais e coletivas também é a sensação que acompanha tais atividades, não o conhecimento teórico sobre quais substâncias aumentam quando estamos nessas situações.

Que é uma boa ideia manter uma rotina de atividade física, se alimentar de forma saudável (basicamente evitando os alimentos ultraprocessados e favorecendo alimentos in natura) e valorizar relações sociais e familiares significativas não há dúvidas. Mesmo que a razão pela qual podemos nos sentir muito bem com essas mudanças não possa ser facilmente explicada pela presença ou ausência de um hormônio específico.    

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