Não se deve confundir metodologia científica com verdade divina

Não existe uma definição universal e fixa do que é ciência. Cada tempo e cada campo tem suas próprias definições. O que é ciência para a física hoje, certamente não corresponde ao que é ciência para a sociologia contemporânea ou mesmo para a física do século XVII. E mesmo dois campos não tão distantes no tempo ou no espaço, como, por exemplo, a fisiologia moderna e a medicina convencional, podem discordar frontalmente sobre o que constitui o saber científico. Explico: enquanto, na fisiologia, é essencial saber qual é o exato processo material que faz com que uma substância produza um certo resultado, na medicina, estranhamente, podemos trabalhar só com o resultado.

Utilizando os famosos ensaios clínicos controlados, podemos chamar de científico algo que não temos a menor ideia de como funciona. Isso desde que sejamos capazes de provar com números e testes estatísticos que funciona. O que deixa fisiologistas consternados, mas é naturalmente aceito pela maior parte dos profissionais de saúde.  

Os tais ensaios clínicos considerados a base da ciência médica aplicada, que tanto diverge da ciência de base, estão longe de serem infalíveis ou de representar a verdade. Ou muito menos de resumir a ciência.

Eles são apenas um instrumento de investigação, que nos auxiliam a ter pistas sobre quais serão os prováveis efeitos de cada intervenção terapêutica. Ferramentas certamente úteis e até mesmo essenciais em alguns contextos, mas que não deixam de ser incapazes de esclarecer todas as nossas dúvidas. Tanto que o modelo dos ensaios clínicos não foi escrito nas estrelas e vive em constante revisão.  

Apesar de todas as ressalvas que os acompanham, sempre há quem se deslumbre com o poder dos ensaios clínicos de intervenção e os confunda com verdade divina. Criando uma perspectiva própria e arrogante de que tudo que passou pelo crivo dos ensaios clínicos é ciência e que todo o resto deve ser descartado como bobagem. Mesmo que, em alguns casos, os resultados dos ensaios clínicos que os desagradam tenham de ser ignorados para sustentar seu argumento.

Não é pouco irônico que o deslumbramento com o poder dos ensaios clínicos de intervenção venha exatamente de quem adora chamar outras formas de conhecimento científico (ou não) de religião disfarçada de pseudociência. Comunicadores eficazes que aplicam construções dogmáticas numa tentativa canhestra de supostamente defender a ciência, sem se dar conta de que estão fazendo exatamente o contrário.

A expectativa de uma ciência absoluta e cheia de certezas cria espaço para que devaneios como a pílula do câncer ganhem tração. Quando se cria a expectativa de que não é possível que a ciência ainda não tenha encontrado uma solução para todos os males é que nascem as panaceias. O novo livro da dupla Natalia Pasternark e Carlos Orsi não é só um acúmulo de bobagens, ele também é um agente capaz de corroer a ciência por dentro com a promessa de certezas que nós, cientistas, nunca seremos capazes de entregar nesses termos. Que fique claro, portanto, o óbvio: que eles não representam qualquer ciência, eles só representam a si mesmos.

Tags: No tags

Add a Comment

Your email address will not be published. Required fields are marked *