Psiquiatras não são tão sabidos quanto você imagina

Porque a psiquiatria que aparece nas redes sociais pode ser pura miragem.

Navegando pelas redes sociais, frequentemente me deparo com profissionais chamando transtornos psiquiátricos de transtornos neurobiológicos ou mencionando os critérios utilizados para determinar certos diagnósticos psiquiátricos como se eles fossem resultado de uma extensa investigação neurocientífica.

Em contraste com esse conhecimento que circula nas redes, quando navego por artigos científicos que falam de transtornos psiquiátricos, o que encontro são teorias que supõe uma base biológica. Teorias essas nunca comprovadas e regularmente reeditadas para tentar acomodar algum achado recente que contesta sua formulação anterior.

Enquanto as redes parecem recheadas de certezas, as referências científicas parecem estar perdidas, procurando desesperadamente por formas de associar vivências emocionais a alterações cerebrais que validem suas teorias e falhando miseravelmente nessa empreitada.

E ninguém precisa acreditar só em mim quanto a isso.

Um personagem tão importante a ponto de ter sido chamado de “o” psiquiatra americano deixou registrado que não encontramos uma base biológica para a maior parte dos transtornos psiquiátricos. Felizmente, ele publicou um livro com essa afirmação para eu não precisar correr o risco de ser acusada de estar sendo exagerada.

Thomas Insel é um psiquiatra estadunidense que dirigiu o Instituto Nacional de Saude Mental (NIMH) de 2002 a 2015. Nesse período, ele controlou a alocação das maiores verbas mundiais de pesquisa em neurociências direcionadas para os transtornos psiquiátricos.

Em 2022, ele publicou um livro chamado Healing: our path from mental illness to mental health. Em tradução livre seria, Cura: nosso caminho da doença mental para a saúde mental. 

Nesse livro, ele fala não do sucesso da sua gestão, mas do seu fracasso.

Insel reconhece que as neurociências incentivadas por ele não foram capazes de trazer tratamentos revolucionários para os transtornos psiquiátricos. Tampouco conseguiram ajudar um número significativo das pessoas diagnosticadas com esses transtornos. As mesmas neurociências também não modificaram a forma como fazemos diagnósticos: com base no que as pessoas nos contam e nós observamos.

Nas palavras de Thomas Insel:

“O DSM (manual para o diagnóstico de transtornos psiquiátricos) criou uma linguagem comum, mas grande parte dessa linguagem não foi validada pela ciência.

Mesmo que os clínicos pudessem concordar com o rótulo, o rótulo ainda poderia estar errado. No mundo real, os pacientes não se encaixavam perfeitamente nessas categorias do DSM, a maioria das crianças e muitos adultos se qualificava para vários rótulos diagnósticos, e dados emergentes da genética e neuroimagem revelavam pouca base biológica para as categorias.

O mais preocupante, os rótulos do DSM poderiam simplesmente estar criando transtornos onde não existem”

Eu discordo de Thomas Insel em vários aspectos relacionados a suposta origem dos transtornos psiquiátricos. Acredito, por exemplo, que a concepção dele em relação à participação dos aspectos sociais apenas como “aquilo que impede as pessoas de se aproveitarem de tratamentos psiquiátricos e psicológicos que funcionam” equivocada. E eu não poderia ser mais vocal contra o slogan de Insel “transtornos psiquiátricos são doenças do cérebro”. No entanto, admiro a sua coragem de vir a público admitir que a visão que ele valoriza e persegue não se comprovou verdadeira.

Pessoas com pensamentos de polaridades inversas raramente concordam.  No entanto, o fracasso das neurociências em encontrar a origem ou transformar a trajetória dos transtornos mentais é aceito como fato inquestionável por pensadores de lados opostos do espectro que vai da orientação técnico-científico até a filosófico-social.

O sociólogo Nikolas Rose– representante de um ponto diametralmente oposto ao de Insel em relação às neurociências- no seu livro Our Psychiatric Future – que em português poderia ser traduzido como O nosso futuro psiquiátrico –  diz:

“Por mais de 25 anos, as categorias do DSM foram obrigatórias para pesquisas sobre as bases neurobiológicas dos transtornos mentais.  (…)  Certamente, esse esforço de pesquisa massivo (…) deveria ter produzido pelo menos algumas descobertas confirmatórias.  (…)

Mas, apesar das esperanças dos comitês de especialistas, (…) a resposta foi não. Mostrou-se impossível identificar bases neurobiológicas claras para qualquer um dos aglomerados de sintomas de qualquer categoria do DSM: a nova edição não seria capaz de incluir um único biomarcador clinicamente validado para qualquer um de seus diagnósticos.”

O que me parece curioso é que mesmo quando um dos maiores conhecedores e entusiastas das neurociências concorda com seus críticos e reconhece que ainda não descobrimos como o cérebro funciona ou o que acontece no cérebro que possa explicar os transtornos psiquiátricos, eu ainda encontro cada vez mais psiquiatras e psicólogos se referindo a algum transtorno psiquiátrico com um transtorno neurobiológico ou aplicando o conteúdo do DSM como se fosse algo inquestionável.

Se, como afirma Thomas Insel, nós não sabemos qual é a causa dos transtornos psiquiátricos, transtornos psiquiátricos não são, até onde a gente consegue saber hoje, transtorno neurobiológicos, e a falta de determinantes biológicos faz pairarem muitas dúvidas sobre a validade do DSM como ele está hoje constituído.

Dizer que algum transtorno psiquiátrico é um transtorno neurobiológico e supervalorizar o conteúdo do DSM é, na minha opinião, um recurso discursivo injustificável e enganador.

Dizer que algo é neurobiológico induz o público não especializado, que não transita pelos corredores da produção científica a acreditar que a origem “neurobiológica” está devidamente comprovada. Além disso, dá a entender que os diagnósticos como estabelecidos no DSM são baseados em estudos neurocientíficos. Duas interpretações falsas que ninguém é capaz de dizer se serão ou não comprovadas em algum momento futuro.

Por isso, o cuidado na comunicação científica me parece tão importante.

Parto do princípio de que todos somos capazes de acomodar a informação de que a psiquiatria contém várias camadas de complexidade. “Simplificar para conseguir informar” não precisa implicar “empobrecer para se parecer que nós, que informamos, somos muito sabidos”. 

Podemos dizer para qualquer público que: a definição dos transtornos psiquiátricos é baseada em consenso e que, portanto, é instável; que a relação da psiquiatria com as neurociências ainda engatinha e que ainda não conseguimos prever se vamos encontrar causas cerebrais para todas as manifestações emocionais; e, enfim, que não somos tão sabidos assim.

Nós, psiquiatras e neurocientistas, trabalhamos com incerteza e imprevisibilidade assim como todos que não são da área e que não participam da produção cientifica.  Nós não sabemos o que se passa no seu cérebro muito melhor do que você, nem conseguimos provar que o que você sente tem alguma causa biológica. O papel dos psiquiatras não é tratar o cérebro, estamos aqui para tratar do sofrimento relacionado às vivências emocionais. Se a culpa é ou não do cérebro, para nós, ainda é irrelevante.

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