Separar a ciência da pseudociência não é tão fácil quanto parece.

Nós, do mundo moderno, adoramos um binarismo. Mente e cérebro, cultura e natureza, razão e emoção, fato e opinião, subjetivo e objetivo…

Além de gostar de dividir em dois, a gente também torce para essa divisão ser bem demarcada. O bom é quando uma coisa é só uma coisa e outra coisa é só outra coisa, sem nenhum grau de sobreposição.

Só que esses nossos muito binarismos são tão sólidos quanto uma bolha de sabão.

São conceitos que a gente construiu para dar uma ordem no mundo, mas o mundo não está nem aí para a nossa necessidade de dividir para entender.

Mesmo na linguagem das ciências, estamos imersos em binarismos imaginários sem nos darmos conta de que eles foram inventados.

A própria contraposição de ciência e pseudociência é muito mais fluida do que a gente gosta de assumir.

É claro que existe ciência e é claro que existe pseudociência, mas é uma ilusão que exista uma fronteira bem evidente entre esses dois. Ou mesmo que a gente tenha uma boa definição para ciência ou pseudociência que produza uma separação tão definitiva quanto intransponível.

Um exemplo fácil para ilustrar esse ponto é a história do movimento conhecido como eugenia. Um movimento com bases tidas, por muito tempo e por muitos cientistas conceituados, como científicas. Até serem finalmente desbancadas como pseudociência…

A eugenia, para quem não sabe, pregava que seria possível “melhorar” a raça humana controlando a reprodução e eliminando os humanos menos “aptos”.  

A eugenia surgiu a partir das ideias de Francis Galton, um cientista que, não por acaso, era primo de Charles Darwin- aquele mesmo da evolução das espécies. E não é espantoso que dois cientistas fossem primos já que, naquela época, não eram muitas as famílias que tinham a possibilidade de apoiar as incursões científicas de seus membros. E a eugenia deve parte da sua existência a essas relações de família.

Galton usou a teoria da evolução de Darwin para interpretar os resultados de estatísticas sociais que ele tinha coletado. Comparando ricos e pobres, Galton havia observado que quem nasce pobre, fica mais doente e tem pouca chance de virar rico. Quando aplicou a ideia de seleção natural aos seus resultados, ele concluiu que a melhor explicação possível era que os pobres são dotados de características hereditárias prejudiciais, como pouca saúde física e pouca inteligência.

Simples assim.

O fato de, naqueles tempos e muitas vezes ainda hoje, os pobres viverem em bairros com pior saneamento e limpeza pública, em casas com mais infiltração e paredes mofadas, com menos acesso a comida e maiores graus de desnutrição, sem acesso à educação ou a tratamentos médicos era, para ele, um detalhe que passou desapercebido.

A culpa da pobreza para Galton era da natureza e não dos homens civilizados.

Uma pobreza herdada biologicamente que vinha acompanhada do detalhe de que a ideia de herança genética naquele momento só existia de forma abstrata, porque ninguém ainda sabia como a transmissão genética era possível.  

O importante para o nosso argumento aqui, no entanto, é que o trabalho de Galton não era uma teoria da conspiração que transitava por algo equivalente a deepweb. A fundação da eugenia se deu a partir de levantamento de dados, análises estatísticas, publicações científicas e discussões em congressos científicos.

Darwin, diga-se de passagem, lhe rasgou elogios.

A partir dos seus achados, Galton concluiu que regular os casamentos para que os mais “aptos” se casassem e procriassem entre si, ao invés de diluir seus traços positivos com seres humanos menos bem dotados, ou seja, pobres, era uma excelente ideia.  Não que ele precisasse fazer muito esforço, porque é claro que os ricos já se casavam entre si.

Infelizmente, a eugenia não se restringiu ao controle de casamentos, que só poderia fazer alguns muito infelizes.

A partir das ideias de Galton, muitos outros cientistas (e são muitos mesmos) resolveram enfiar o pé no que eles julgavam ser um acelerador da seleção natural da nossa espécie. Esses cientistas eugenistas resolveram que não bastava garantir o casamento entre pessoas com características desejáveis, eles também acharam, por bem, eliminar os indesejados.

Claro que outros cientistas e pessoas de fora da ciência perceberam cedo a cilada dos movimentos pró eugenia. Mas demorou para que essas vozes fossem majoritárias e conseguissem conter as loucas fantasias de pureza racial. Congressos de eugenia ocorreram por toda Europa e pelas Américas e o movimento só foi realmente contido após a segunda guerra.  E, claro, que ele não desapareceu. Mas essa é outra história…

Como foi possível que um erro tão evidente quanto ignorar que a piores condições de vida na pobreza adoecem as pessoas possa ter perdurado tão firmemente por um século?

Isso, provavelmente, foi o resultado do preconceito, racismo e colonialismo compartilhado entre muitos cientistas, que, naquela época, eram majoritariamente homens brancos europeus de classes abastadas.

Mas voltemos ao nosso assunto.

Aos olhos de hoje, para alguns, Galton foi um cientista. Para outros, um cientista preconceituoso. E para outros ainda, um pseudocientista.

Ele foi tudo isso e mais um pouco.  

Os dados que embasaram as conclusões de Galton foram coletados com métodos científicos, assim como suas análises aplicaram a melhor matemática e estatística da sua época. Não foi à toa que outros colegas, também cientistas, assinaram embaixo das conclusões de Galton. Tudo parecia fazer muito sentido. Suas ideias eram muito racionais. Galton foi um cientista que criou uma pseudociência com base em uma interpretação preconceituosa e racista dos seus resultados. Mas é inegável que ele tenha feito isso cientificamente.

Por isso, o uso do binarismo ciência e pseudociência não nos protege de disparates como esses. Um verdadeiro cientista pode fazer pseudociência assim como algo pode ser científico e ainda assim estar errado.

Esse é um exemplo de como a fantasia de que a ciência é uma empreitada exclusivamente racional e objetiva, que pode ser facilmente diferenciada de qualquer pseudociência, crença ou falsidade, cega os cientistas sobre os seus próprios preconceitos.

Assumir que não existe objetividade sem subjetividade, que não existe racionalidade sem emoção, e que mesmo fatos incontestáveis podem ser usados para alimentar opiniões preconceituosas não é um risco para a ciência.

Pelo contrário.

Admitir que os cientistas são humanos que também podem falhar e reproduzir preconceitos conscientes e inconscientes é uma forma de proteger a ciência de equívocos como a eugenia. 

Isso, claro, não quer dizer que a ciência está sempre errada. Ela, inclusive, acerta bastante.

O problema é achar que só porque é ciência está certo ou é definitivo. Que só porque é ciência é fato incontestável. Que só porque é ciência, não é também uma questão de opinião.

Antes de finalizar, deixo aqui alguns avisos:

A terra é redonda, o homem pisou na Lua em 1969, Elvis morreu (pelo menos fisicamente), as pessoas vacinadas desenvolvem versões mais brandas das doenças infecciosas, não existe cura universal para todo tipo de câncer, é impossível um ser humano viver para sempre, o aquecimento global existe e é produto da atividade humana no planeta. 

Todos esses fatos são incontestáveis, sendo científicos ou não.

O que a consciência do papel da subjetividade na ciência nos traz não é um relativismo absoluto no qual qualquer coisa pode ser questionada. E no qual qualquer teoria tresloucada tem seu lugar ao sol.     

O que a consciência do papel da subjetividade na ciência nos traz é a capacidade de conversar com os cientistas sem assumir que eles sabem tudo e que todo o resto da humanidade não sabe nada. 

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