O mito do cérebro autista

Machado, como sempre, estava certo.

Em seu livro O Alienista, Machado de Assis conta a história do doutor Simão Bacamarte, médico e cientista formado na Europa que resolve se assentar na pequena cidade de Itaguaí, apesar de ter inúmeras possibilidades de voltar para Portugal.

A característica mais marcante do doutor é que ele é um “humilde homem da ciência”, sem qualquer outro interesse que não o acúmulo de conhecimento e o cuidado dos doentes. 

Tanto que tendo seu pedido de se estabelecer na pequena Itaguaí concedido, Simão Bacamarte, imbuído do mais profundo desejo de estudar a alma humana, cria a Casa Verde, um asilo para abrigar todos os loucos da cidade.

No entanto, com a expansão de suas teorias sobre a loucura, não tarda para que a Casa Verde vire uma povoação, tamanho o número daqueles que Bacamarte considerava lunáticos.

Surge então uma rebelião para conter os rompantes científicos do eminente doutor.  E depois de reviravoltas rocambolescas, Simão Bacamarte termina por libertar todos aqueles encarcerados na Casa Verde – e passa ele mesmo a habitar o local.

Nessa obra, Machado de Assis parece ter previsto que nossos furores cientificistas nos fariam intolerantes às dores da alma. Grande conhecedor da nossa arrogância científica, Machado usou a ironia e o humor para descrever um cenário que hoje sabemos ser muito real.

Somos nós que estamos habitando a Casa Verde, cercados de loucuras que enxergamos nas pequenas diferenças.  Pequenas diferenças essas que, dizem, só podem ser autistas e cerebrais.  

Cada vez mais autistas?    

Carregar os traços autistas não é igual a ter o diagnóstico de autismo. É possível ser autista, mas nunca ser reconhecido como tal, assim como é possível não ser autista e receber o diagnóstico como se fosse. 

Considerando a diferença entre ter os sintomas e receber o diagnóstico, a pergunta se de fato há um aumento concreto na proporção de pessoas com traços autistas tem gerado respostas contraditórias.

Essas respostas dividem os pesquisadores da área entre aqueles que acreditam que houve um aumento concreto na proporção de pessoas com autismo e aqueles que atribuem o aumento no diagnóstico de autismo não a um aumento da proporção de pessoas com autismo, mas sim a uma mudança de cultura em relação a forma como se faz o diagnóstico.

Houve, de fato uma maior atenção de profissionais de saúde para reconhecer esse diagnóstico. O que significa que, pelo menos parte, o aumento na frequência de diagnósticos de autismo nada tem a ver com um aumento na frequência dos traços autistas na população.

Porém, definir se apenas as mudanças na atenção para o diagnóstico justificam todo o aumento observado nos diagnósticos de autismo ainda é um motivo de disputa1

O que aflige hoje alguns psiquiatras, no entanto, não é o aumento registrado de diagnósticos oficiais de transtornos do espectro autista, que mesmo nas estimativas mais extremas não chegaria nem a 5% da população2.

O que é aflitivo é a transformação, por força do que circula nas redes sociais, de uma dezena de queixas diferentes, que muitas vezes fazem parte da condição humana, em sinais de transtornos do espectro autista.

O autismo em si é uma doença grave, caracterizada por sintomas com os quais não é fácil se identificar: ausência ou dificuldades de desenvolver linguagem verbal, ausência de contato visual, comportamentos repetitivos e estereotipados, desinteresse por interações sociais, restrições alimentares (comer alimentos só de uma cor, ou só de uma textura ou só de um tipo), intolerância absoluta a estímulos como barulhos e cheiros, reações emocionais graves frente às mudanças na rotina, entre outros.

Porém, ao trabalhar com a ideia de espectro, ou seja, de um gradiente de gravidade, que pode incluir manifestações de qualquer natureza ou intensidade, desde que relacionadas às questões sociais e de linguagem, a lista de sintomas virou uma lista de vivências comuns.

Com essa ampliação, dificuldades de desenvolver linguagem verbal vira escolher palavras difíceis, desinteresse por situações sociais vira baixa energia social, dificuldade de socialização passa a ser equivalente à timidez, não entender ironias vira não saber se as pessoas estão falando sério, e por aí vai.  

Além de incluir vivências comuns, com o espectro autista, sintomas emocionais que antes eram classificados em diferentes transtornos agora podem ser explicados como formas de autismo.

Nas redes, transtornos com os quais trabalhamos nas últimas décadas – ansiedade social, transtorno obsessivo compulsivo e transtornos da personalidade – foram todos convertidos em um grande grupo, que acomoda pessoas com qualquer manifestação em qualquer patamar de gravidade.

Claro que a forma como fazemos os diagnósticos de transtornos psiquiátricos está sempre sujeita a transformações. Ainda vamos viver muitas reorganizações de diagnósticos psiquiátricos.

No entanto, o que é surpreendente no uso atual da denominação “espectro autista” nas redes sociais é que ela se expandiu de uma forma tão ampla que algumas vezes chega a obscurecer qualquer outra possibilidade de diagnóstico ou explicação para vivências emocionais.

E na esteira da explicação de ser portador do espectro autista, já vem embutida a explicação da causa do transtorno: o cérebro.

A culpa é do cérebro?

Um dos grandes incentivadores da ampliação do diagnóstico de transtornos do espectro autista é o movimento conhecido como neurodiversidade.

O termo “neurodiversidade” foi cunhado pela socióloga australiana Judy Singer em 1999 2.

Singer queria com esse termo:

● Combater a posição de psicanalistas que culpabilizavam a família pelos sintomas das pessoas com autismo

● Questionar a autoridade médica como fonte de informação, definição da normalidade e da necessidade de tratamento

● Favorecer o crescimento de movimentos políticos de deficientes pró autodefesa e auto-advocacia

Por mais que Singer estivesse muito bem-intencionada na sua abordagem, suas escolhas não foram inocentes. A escolha do prefixo “neuro” para dar nome ao movimento neurodiversidade, por exemplo, foi uma decisão política deliberada.

O “neuro” do neurodiversidade faz parecer que existem evidências cerebrais/neurológicas que justifiquem o movimento.  Só que o movimento neurodiversidade não tem nenhuma base em achados cerebrais ou neurológicos.

Do ponto de vista das neurociências, não há qualquer evidência de que pessoas que hoje são classificadas como portadoras de transtornos do espectro autista ou que se autodenominam autistas carreguem semelhanças relacionadas ao seu funcionamento cerebral3, além daquelas, é claro, compartilhadas por todos os seres humanos.

 Inclusive as causas do autismo são, em sua maior parte, ainda desconhecidas4. Nada garante que todas as causas desse autismo expandido sejam, necessariamente, cerebrais.  

Segundo os próprios membros do movimento5, a escolha do termo “neuro” foi uma forma de não culpabilizar as pessoas com autismo ou as suas famílias, seguindo a lógica de que se a culpa é do cérebro, ela não é da pessoa. Se são mesmo alterações no cérebro que explicam os sintomas, foi irrelevante para a escolha do prefixo.

Por mais que não seja difícil concordar com a irritação de Singer com as teorias que culpavam familiares de crianças autistas pelo adoecimento, será que culpar o cérebro é a melhor ou única maneira de evitar essa culpabilização?

Em outras palavras, claro que as teorias sobre “mães-geladeira” – teorias psicanalíticas que atribuíam à insensibilidade das mães as dificuldades sociais dos seus filhos autistas- devem ser extintas. Mas será que isso significa que as teorias de mães-geladeira precisam ser substituídas por uma nova mitologia cerebral?

Os desdobramentos de culpar o cérebro e entender a humanidade com um conjunto de diversidades cerebrais não são irrelevantes.

 Recusar a complexidade de interações entre cultura, sociedade, psicologia, psiquiatria e ciência pode, como já previa Machado, nos colocar a todos como enlouquecidos internos da Casa Verde. Ou, após reviravoltas rocambolescas, como uma ciência encastelada que não mais consegue responder aos interesses da humanidade que a sustenta.

Citando a filósofa da ciência Isabelle Stengers:

“Gostaria de tornar possível um riso que não se faça à custa dos cientistas, mas que, idealmente, possa com eles ser partilhado.”**

E, para isso, a ironia machadiana é uma ótima aliada.

Esclarecimentos e caminhos alternativos

Certamente não precisamos culpabilizar as pessoas pelos seus sintomas emocionais. Por outro lado, também não podemos negar que, no caso de muitos sintomas emocionais, as pessoas precisam estar, de alguma forma, implicadas como pessoas e não como cérebros divergentes.

É fato que somos muito diversos e que a sociedade pode ser pouco acolhedora à essa diversidade. Mas isso não quer dizer que a nossa melhor opção é nos entender como cérebros divergentes e não como pessoas que, por muitos motivos cerebrais ou não, podem ser muito diferentes entre si.

Eu não poderia ser mais favorável à diversidade e às discussões de como melhor acomodar as diferenças. Eu só não acho que dizer, por desejo de não culpar inocentes, que essa diversidade é cerebral, nos ajude no trabalho de diminuir preconceitos e equalizar oportunidades.

Devemos, sem dúvida, questionar nossos critérios de avaliação de desempenho ou de reconhecimento de sucesso e apontar os riscos de criar ambientes muito competitivos nos quais a sobrevivência só é possível em caso de sucesso financeiro ou profissional de acordo com um determinado padrão.

Precisamos criar mais opções de vida viáveis independente de resultados de desempenho e tornar possível fracassar de acordo com algum referencial e, ainda assim, sobreviver com dignidade.

Na minha opinião, a melhor forma de começar é reconhecer que somos pessoas com histórias de vida peculiares, que existem em circunstâncias sociais, raciais e biológicas próprias, e não cérebros ambulantes sem história e sem contexto.

E um último lembrete: eu, como psiquiatra e neurocientista, não tenho a pretensão de representar o pensamento da classe de psiquiatras ou neurocientistas. Estou ciente de que muitos colegas discordam frontalmente das minhas opiniões, e estou disponível para discutir o tema com todos, independente de concordarem ou discordarem com esse posicionamento.

** Frase encontrada no livro Políticas da Razão, de Isabelle Stengers (Edições 70, página 25).

  1. Salari N, Rasoulpoor S, Rasoulpoor S, Shohaimi S, Jafarpour S, Abdoli N, Khaledi-Paveh B, Mohammadi M. The global prevalence of autism spectrum disorder: a comprehensive systematic review and meta-analysis. Ital J Pediatr. 2022 Jul 8;48(1):112. doi: 10.1186/s13052-022-01310-w.  Esse artigo está disponível na íntegra pelo link: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC9270782/
  2. https://g1.globo.com/educacao/noticia/2023/04/02/1-a-cada-36-criancas-tem-autismo-diz-cdc-entenda-por-que-numero-de-casos-aumentou-tanto-nas-ultimas-decadas.ghtml
  3. Ortega F. O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade. Mana [Internet]. 2008Oct;14(2):477–509. https://doi.org/10.1590/S0104-93132008000200008 disponível na íntegra pelo link https://www.scielo.br/j/mana/a/TYX864xpHchch6CmX3CpxSG/#)
  4. Wang L, Wang B, Wu C, Wang J, Sun M. Autism Spectrum Disorder: Neurodevelopmental Risk Factors, Biological Mechanism, and Precision Therapy. Int J Mol Sci. 2023 Jan 17;24(3):1819. doi: 10.3390/ijms24031819. PMID: 36768153; PMCID: PMC9915249. Esse, infelizmente, só tem o resumo disponível pelos meios gratuitos e legalizados…
  5. Autistic Community and the Neurodiversity Movement: Stories from the Frontline. Ebook de distribuição gratuita. É possível baixar o ebook em PDF pelo link https://doi.org/10.1007/978-981-13-8437-0

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